Em nosso primeiro dia de aula de Psicologia da Motivação com o professor e coordenador do curso, Márcio Agostinho, autointitulado Márcio Show, deu-se ênfase à frase de Albert Camus, "O
homem é a única criatura que se
recusa a ser o que ela é", extraída do livro "O Homem Revoltado". Curioso que sou, fui pesquisá-la e deparei-me com o texto de Rubem Alves chamado "Os Símbolos da Ausência", cuja citação inicial é a emblemática frase de Camus. O texto é um primor. Abaixo, a sua reprodução.
OS SÍMBOLOS DA AUSÊNCIA1
Através de centenas de milhares de anos os animais
conseguiram sobreviver por meio da adaptação física. Os seus dentes e as
suas garras afiadas, os cascos duros e as carapaças rijas, seus venenos e
odores, os sentidos hipersensíveis, a capacidade de correr, saltar, cavar, a
estranha habilidade de confundir-se com o terreno, as cascas das árvores, as
folhagens, todas estas são manifestações de corpos maravilhosamente adaptá-los
à natureza ao seu redor. Mas a coisa não se esgota na adaptação física do
organismo ao ambiente. O animal faz com que a natureza se adapte ao seu corpo.
E vemos as represas construídas pelos castores, os buracos-esconderijo dos tatus,
os formigueiros, as colméias de abelhas, as casas de joão-de-barro... E o
extraordinário é que toda esta sabedoria para sobreviver e arte para fazer seja
transmitida de geração a geração, silenciosamente, sem palavras e sem mestres.
Lembro-me daquela vespa caçadora que sai em busca de uma aranha, luta com ela,
pica-a, paralisa-a, arrastando-a então para o seu ninho. Ali deposita os seus
ovos e morre. Tempos depois as larvas nascerão e se alimentarão da carne fresca
da aranha imóvel. Crescerão. E sem haver tomado lições ou freqüentado escolas,
um dia ouvirão a voz silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, há
milhares de anos: "Chegou a hora. É necessário buscar uma aranha...”
E o que é extraordinário é o tempo em que se dá a
experiência dos animais. Moluscos parecem fazer suas conchas hoje da mesma
forma como o faziam há milhares de anos atrás. Quanto aos joãos-de-barro, não
sei de alteração alguma, para melhor ou para pior, que tenham introduzido no
plano de suas casas. Os pintassilgos cantam hoje como cantavam no passado, e as
represas dos castores, as colméias das abelhas e os formigueiros têm
permanecido inalterados por séculos. Cada corpo produz sempre a mesma coisa.
O animal é o seu corpo. Sua programação biológica é completa, fechada,
perfeita. Não há problemas não respondidos. E, por isto mesmo, ele não possui
qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais
praticamente não possuem uma história, tal como a entendemos. Sua vida se
processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da liberdade não lhes é
oferecida, mas não recebem, em contrapartida, a maldição da neurose e o terror
da angústia.
Como são diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do
animal me permite prever que coisas ele produzirá - forma de sua concha, de sua
toca, do seu ninho, o estilo de sua corte sexual, a música de seus sons - e as
coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram, não existe
nada semelhante que se possa dizer dos homens. Aqui está uma criança
recém-nascida. Do ponto de vista genético ela já se encontra totalmente
determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibilidade a
enfermidades. Mas, como será ela? Gostará de música? De que música? Que língua falará? E qual será
o seu estilo? Por que ideais e valores lutará? E que coisas sairão de suas
mãos? E aqui os geneticistas, por
maiores que sejam os seus conhecimentos, terão de se calar. Porque o homem,
diferentemente do animal que é o seu corpo, tem o seu corpo. Não é o
corpo que o faz. É ele que faz o seu corpo. É verdade que a programação
biológica não nos abandonou de todo. As criancinhas continuam a ser
geradas e a nascer, na maioria das vezes perfeitas, sem que os pais e as mães
saibam o que está ocorrendo lá dentro do ventre da mulher. E é igualmente a
programação biológica que controla os hormônios, a pressão arterial, o bater do
coração. . . De fato, a programação biológica continua a operar. Mas ela diz
muito pouco, se é que diz alguma coisa, acerca daquilo que iremos fazer por
este mundo afora. O mundo humano, que é feito com trabalho e amor, é uma página
em branco na sabedoria que nossos corpos herdaram de nossos antepassados.
O fato é que os homens se recusaram a ser aquilo que, à
semelhança dos animais, o passado lhes propunha. Tornaram-se inventores de
mundos. E plantaram jardins, fizeram choupanas, casas e palácios, construíram
tambores, flautas e harpas, fizeram poemas, transformaram os seus corpos,
cobrindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras,
construíram altares, enterraram os seus mortos e os prepararam para viajar e,
na sua ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas noites. . .
E quando nos perguntamos sobre a inspiração para estes
mundos que os homens imaginaram e construíram, vem-nos o espanto. E isto porque
constatamos que aqui, em oposição ao mundo animal onde o imperativo da
sobrevivência reina supremo, o corpo já não tem a última palavra. O homem é
capaz de cometer suicídio. Ou entregar o seu corpo à morte, desde que dela um
outro mundo venha a nascer, como o fizeram muitos revolucionários. Ou de
abandonar-se à vida monástica, numa total renúncia da vontade, do sexo, do
prazer da comida. É certo que poderão dizer.-me que estes são exemplos
extremos, e que a maioria das pessoas nem comete suicídio, nem morre por um
mundo melhor e nem se enterra num mosteiro. Tenho de concordar. Mas, por outro
lado, é necessário reconhecer que toda a nossa vida cotidiana se baseia numa
permanente negação dos imperativos; imediatos do corpo. Os impulsos sexuais, os
gostos alimentares, a sensibilidade olfativa, o ritmo biológico de
acordar/adormecer deixaram há muito de ser expressões naturais do corpo porque
o corpo, ele mesmo, foi transformado de entidade da natureza em criação da
cultura.. A cultura, nome que se dá a estes mundos que os homens imaginam e
constroem, só se inicia no momento em que o corpo deixa de dar ordens. Esta é a
razão por que, diferentemente das larvas, abandonadas pela vespa-mãe, as
crianças têm de ser educadas. É necessário que os mais velhos lhes ensinem como
é o mundo. Não existe cultura sem educação. Cada pessoa que se aproxima de uma
criança e com ela fala, conta estórias, canta canções, faz gestos, estimula,
aplaude, ri, repreende, ameaça, é um professor que lhe descreve este
mundo inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois que nos
umbrais do mundo humano ela cessa de falar.
Se o corpo, como fato biológico bruto, não é a fonte e
nem o modelo para a criação dos mundos da cultura, permanece a pergunta: por
que razão os homens fazem a cultura? Por que motivos abandonam o mundo sólido e
pronto da natureza para, à semelhança das aranhas, construir teias para sobre
elas viver?
Para que plantar jardins?
E as esculturas, os quadros, as sinfonias, os poemas?
E grandes e pequenos se dão as mãos, e brincam de roda, e
empinam papagaios, e dançam. . .
... e choram os seus mortos, e choram a si mesmos nos
seus mortos, e constroem altares, e falam sobre a suprema conquista do corpo, o
triunfo final sobre a natureza, a imortalidade da alma, a ressurreição da
carne.. .
E eu tenho de confessar que não sei dar resposta a estas
perguntas. Constato, simplesmente, que é assim. E tudo isto que o homem faz me
revela um mistério antropológico. Os animais sobrevivem pela adaptação física
ao mundo. Os homens, ao contrário, parecem ser constitucionalmente desadaptados
ao mundo, tal como ele lhes é dado. Nossa tradição filosófica fez seus mais
sérios esforços no sentido de demonstrar que o homem é um ser racional, ser de
pensamento. Mas as produções culturais que saem de suas mãos sugerem, ao
contrário, que o homem é um ser de desejo. Desejo é sintoma de privação, de
ausência. Não se tem saudade da bem-amada presente. A saudade só aparecerá na
distância, quando estiver longe do carinho. Também não se tem fome - desejo
supremo de sobrevivência física - com o estômago cheio. E os poemas do
cativeiro não quebram as correntes e nem abrem as portas, mas, por razões que
não entendemos bem, parece que os homens se alimentam deles e, no fio tênue da
fala que os enuncia, surge de novo a voz do protesto e o brilho da esperança.
A sugestão que nos vem da psicanálise é de que o homem
faz cultura a fim de criar os objetos do seu desejo. O projeto inconsciente do
ego, não importa o seu tempo e nem o seu lugar, é encontrar um mundo que
possa ser amado. Há situações em que ele pode plantar jardins e
colher flores. Há outras situações, entretanto, de impotência em que os
objetos do seu amor só existem através da magia da imaginação e do poder
milagroso da palavra. Juntam-se assim o amor, o desejo, a imaginação, as mãos e
os símbolos, para criar um mundo que faça sentido, que esteja em harmonia com
os valores do homem que o constrói, que seja espelho, espaço amigo, lar. . . A
fome só surge quando o corpo é privado do pão. Ela é testemunho da ausência do
alimento. E assim é, sempre, com o desejo. Desejo pertence aos seres que se
sentem privados, que não encontram prazer naquilo que o espaço e o tempo
presente lhes oferece. É compreensível, portanto, que a cultura não seja nunca
a reduplicação da natureza. Porque o que a cultura deseja criar é exatamente o
objeto desejado. A atividade humana, assim, não pode ser compreendida como uma
simples luta pela sobrevivência que, uma vez resolvida, se dá ao luxo de
produzir o supérfluo. A cultura não surge no lugar onde o homem domina a
natureza. Também os moribundos balbuciam canções, e exilados e prisioneiros
fabricam poemas. Canções fúnebres exorcizarão a morte? Parece que não. Mas elas
exorcizam o terror e lançam pelos espaços afora o gemido de protesto e a reticência
de esperança. Realização concreta dos objetos do desejo ou, para fazer uso de
uma terminologia que nos vem de Hegel, objetivação do Espírito.
Teríamos então de nos perguntar: que cultura é esta em
que este ideal se realizou?
Nenhuma. É possível discernir a intenção do ato
cultural, mas parece que a sua realização efetiva para sempre escapa
àquilo que nos é concretamente possível. À volta do jardim está sempre o
deserto que eventualmente o devora; a ordo amoris (Scheller) está
cercada pelo caos; e o corpo que busca amor e prazer se defronta com a
rejeição, a crueldade, a solidão, a injustiça, a prisão, a tortura, a dor, a
morte. A cultura parece sofrer da mesma fraqueza que sofrem os rituais mágicos:
reconhecemos a sua intenção, constatamos o seu fracasso — e sobra apenas a
esperança de que, de alguma forma, algum dia, a realidade se harmonize com o
desejo. E enquanto o desejo não se realiza, resta cantá-lo, dizê-lo,
celebrá-lo, escrever-lhe poemas, compor-lhe sinfonias, anunciar-lhe celebrações
e festivais. E a realização da intenção da cultura se transfere então para a
esfera dos símbolos.
Símbolos assemelham-se a horizontes. Horizontes: onde se
encontram eles? Quanto mais deles nos aproximamos, mais fogem de nós. E, no entanto,
cercam-nos atrás, pelos lados, à frente. São o referencial do nosso caminhar.
Há sempre os horizontes da noite e os horizontes da madrugada... As esperanças
do ato pelo qual os homens criaram a cultura, presentes no seu próprio
fracasso, são horizontes que nos indicam direções. E esta é a razão por que não
podemos entender uma cultura quando nos detemos na contemplação dos seus
triunfos técnicos/práticos. Porque é justamente no ponto onde ele fracassou que
brota o símbolo, testemunha das coisas ainda ausentes, saudade de coisas que
não nasceram...
[1] Retirado de ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Editora Brasiliense,
1991. 14ª edição. Pp. 14-22.
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